quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Diálogo: Alto Indo


Salve os Três Magos do Oriente!

Brahma-Vishnu-Shiva
Parvati
Krisna
Arjuna
Thot
Tat, seu filho.

Thot ingressa em peregrinação lado a Tat, em direção ao Indo, desejoso de indicar para seu filho o mistério do Um, a dualidade [perspectiva e vontade], como o um angula em três, não deixando de ser o que é, potencia as quatro, as sete e as nove ordens de coisas, além da década [conjunto envolvente inclusivo], toda a região do não e a não coisa…
Nas proximidades de uma grande montanha, antes de tudo, haviam de encontrar Parvati, que antevendo a chegada dos cientistas do sudoeste estava pronta a levá-los a ter com Krisna e Arjuna que debatiam a luz do palco sobre a batalha do espírito.
- Veja filho, a moça a saudar-nos. Apresenta-se ela como intérprete e pretende nos levar a ter com guerreiros admiráveis.
- Ela é formosa e jovem, assim como se afigura a ciência. Resta-nos saber se é doce como a arte - diz Tat.
- O elefante hindu saúda a egípcia ave íbis. Tenho como certo que vieste aos sábios, e como entre nós, dois deles se desdobram ainda em guerreiros formidáveis; mostrar-vos-ei, os campeões divinos que se ocupam da verdade segundo a medida eterna e a dos homens.
- Mas, dizei-nos, tão somente coisas agradabilíssimas e concordantes com o nosso anelo no maior grau - diz Thot.
- Então, sem demora venham comigo e teremos prazer em entregar-nos ao diálogo e a busca - convida Parvati.
- O que estava à procura já se pôs a caminho. Acompanhe-nos, Tat e feche a boca, se por estupefação não falas, ao menos não simule os teus lábios dizer aquilo de que não podeis escapar. E nem te permitiria.
             Seguiram Parvati serpeando à beira do rio até a proximidade da encosta que ladeia a árvore bodhi, a mesma em que sob cuja sombra séculos mais tarde o príncipe Sidharta repousara. Ali se detinham Arjuna e Krisna, o primeiro atirando flechas à lua, pois era fim de noite e já despontaria o sol do novo dia. Ao apercebem-se da comitiva que vinha em sua direção, voltaram-se se apressando em cumprimentar os forasteiros.
- Namastê - disse Krisna.
- O Olho de Hórus saúda-o desde as margens do Nilo. Seja o Ganges próspero pelas sucessivas gerações.
- O que o vento do oeste nos prepara? Viestes pelo vosso semblante em busca do raiar do dia e àquilo que o sol preconiza - disse o senhor Krishna, com ares de sumamente contente.
- Sabeis bem e o adivinhais perfeitamente - disse-lhes jubiloso Thot, o divino escriba.
E sentando-se em meia lua em torno da árvore, como era costume nesses negócios, puseram-se relaxados, cada um com sua maneira própria de sentar-se para meditar, uns ao modo oriental e outros ao modo oriental além do oriente, sem pressa e no mesmo nível, ao soalho que a imensa árvore levantava. A sua copa havia se ampliado geometricamente e e descrevia um círculo perfeito, uma lua negra em pleno sol que assaltara de súbito o véu da densa noite logo que ingressaram em agradável e acalorado debate…


06/01/2009

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Ars


Artes, confesso ser difícil falar disso. Tento uma definição: é ao mesmo tempo atividade e produto da mesma, é o produzir efeito com técnica ou inspiração. Desta última encarregam-se a Musa e o Gênio. 

A técnica é a arte humana para compensar a imprevisibilidade do divino. Que isto baste para as artes em geral. No entanto, no que diz respeito a área de atuação acadêmica das artes plásticas e cênicas, exigem constância e adaptação aos meios e materiais disponíveis. Projeto e improviso caracterizam o métier do artista. Calcula a matéria prima e a molda ao seu estilo. A eternidade é seu desejo mais íntimo. 

Nisso os gregos sabiam num único bloco de mármore extrair do excesso a forma que morava na pedra. O bom artista é como um geometra, senhor dos ângulos e dos espaços. Dono de um senso de perspectiva ímpar, ele (ou ela) sonha com colunas erguidas que a tetos em arcos sustém. Ai, em seus sonhos, é arquiteto dos mundos de sua paixão. 

O ator encarna personas múltiplas, no ilustre palco de nossos frenéticos enganos. Se não tiver a si e souber ser o palco onde forças cósmicas lutam em performance orquestrada, não arrancará mais que bocejos do público que se deve purificar pelos pendulares movimentos de seus estados de alma. 

A arte não apenas imita a vida, pois sendo esta a própria obra, fruir do objeto artístico amado é viver na plena expressão do verbo, ao passo que o que nos dota para criar é o sopro que aquece o peito e que em face da presença é mais forte quanto mais brilha a luz pura daquele farol sem mácula que segue na noite dos sonhos e dos mundos como o ser eternamente desperto de que ela é filha.
.
É preciso acreditar que tudo a nossa volta pode tornar-se assim, porque a arte, não é um objeto comercial, mas a necessidade de fazer do que existe a expressão do próprio belo.

O que nos apraz é bom e fiel critério pois rege estética que nos traslada até a ação transformadora que reside na mão do artista, pois a beleza nos faz querer o bem e o melhor que está escondido nas simples e mínimas coisas ao nosso redor, toda uma fauna e flora desconhecidas a espreita de seu amado amante, o poeta, o único que se aventura em seus domínios, aquele que se embriaga na imaginação até perderem as pernas o chão e aos céus interiores da ideia saborear em um elástico abraço que ele costura com suas coruscantes asas.

“Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo” - diz-nos o poeta.

Felizes as crianças que quando olham uma flor amarela no campo sabem ter nela o pasmo essencial de quem sente que nascera deveras para ver e amar todas as flores como únicas que são, em suas cores e fragrâncias, em todos os seus dilemas que lhe ordena harmonizar sua amada e bela Natureza, e a devolvê-la a si do cativeiro que lhe impuseram aqueles que nunca a viram, pois seu mister é o único capaz de revelá-la em cada verso como uma bênção, límpida e cristalina: ela por ela.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Antigas Ciências do Espírito

As Humanidades, Ciências Humanas ou Antigas Ciências do Espírito


São as únicas capazes de formar o homem desde que é isso o que visa, bem como está alojada no coração daquele que age, pensa e sente. A mais antiga dentre elas, no ocidente, é a filosofia.

A Filosofia é o amor mais puro e que não se pode tirar àquele que uma vez experimentou. Aquilo que é amado é o saber. Não visa outras recompensas1. O filósofo lê a tradição de seus escritores como quem vela a esposa que nunca consegue conquistar, ela dele foge com a mão estendida em aceno, deixa para trás o ângulo do beijo e o raio de seu olhar que o trespassa ruidoso. Deve ler, e escrever se possível, com uma constância inumana. O dia é um plano de estudo. A sua busca envolve todo o seu ser. Ele dorme, sonha, sente e quer saber, pensa e vê no reflexo das águas e espelhos, nas retinas dos olhos, a filosofia. Os não iniciados interpretam seu delírio e disposição como loucura.

O filósofo sabe, assim como todos os outros homens de ciências humanas que seus verbos principais são: ler, falar bem, escrever e, antes de tudo, formar-se no uso e fortalecer a potência do seu pensar.

A História, assim como a filosofia é grega e antiga. Nasceu do mito e da crônica. É uma Musa jovem a quem deram o nome Clio. Filha da Memória como as demais musas e de Zeus, as que inspiram poetas, filósofos, bardos e historiadores. É a arte da narrativa. Poucos hoje sabem contar histórias. Até porque não se respeita mais o antigo. Quando a novidade é a lei, os homens parecem ter esquecido que não há nada de novo sob o sol. Só a experiência cultural e individual, a busca de conhecer o outro, o diferente e a si mesmo, na vivência prolongada de si e da história permite ver que muito do que há é repetição e que o homem é o palco onde lutam forças cósmicas que o desdenham por infame que seja.

O historiador diferentemente do filósofo, do sociólogo e do psicológo, pois cada um destes ao seu modo tende a generalizar, e ele, particularizar no detalhe, a sutileza que a distinção, em sua sensibilidade, traz ao conhecimento.

Assim como na filosofia, o historiador terá de ler a maior parte de seus precursores. O estilo é um hábito que desabrocha espontaneamente, não se sabe quando, desde que bem regado.

As Letras inclui o tratamento da linguagem como um todo e, potencialmente, todas as modalidades de expressões humanas. A linguagem é o que há de comum. É o meio e o elo da comunicação, realmente difícil em nossos dias. A literatura universal e portuguesa, a linguística, que é a parte mais científica do currículo, e o ensino das línguas vernáculas (grego, latim, e português) e modernas (francês, inglês, alemão, espanhol etc.) são suas áreas específicas de atuação. As línguas dão abertura a universos culturais e formam a nossa capacidade analítica e sintética do pensamento. Essa exigência, o conhecimento de outras linguas é comum a todas as humanidades. Se a poesia é fonte da língua, o poeta e o escritor produzem os materiais de que a literatura se serve para entender ao homem e este a si.

Os estudantes de Letras e de História, principalmente nas áreas de literatura, português e línguas têm mercado de trabalho amplo. Devem, contudo, evitar se possível lecionar, o que sem dúvida é necessário, antes de formarem-se na pergunta: o que é ensinar?

As Ciências Sociais são delimitadas em três disciplinas: Sociologia, Antropologia e Ciência Política. Exceto a Ciência Política que podemos fazer remontar a Aristóteles2, a Sociologia, a Antropologia e a Psicologia Modernas são frutos do século XIX. Buscam seu estatuto de ciência nas Exatas, o que vale sobretudo, para a Psicologia. Incluem a estatística e modo de comprovação empírico, isto é, por via de dados da experiência, provas e evidências. Acabam por ser detetives e pouco intervenção no social possuem, a não ser em áreas de planejamento social; fazem o diagnóstico das doenças sociais e modernas e avaliam o impacto das tranformações ocasionadas a vida mental dos indivíduos, a partir do advento da modernidade e quanto a civilização urbana. Delas a Antropologia, apesar de ter surgido em seu ideal de dominação a outras culturas, aprofundou os contatos entre civilizações à época das navegações a regiões desconhecidas para os ocidentais de até então. A tendência muda na segunda geração, onde por exemplo, Franz Boas, em suas pesquisas participantes, se misturava a qualquer povo e como intruso/recebido imita todos os gestos, dorme e come, aprende a língua, se outra. A Ciência Política é uma escola realista que trata de responder às perguntas: quem manda? como manda? o que é o súdito e a soberania, qual o modo de ser do homem. É a mais filosófica dentre as Ciências Sociais.

A Psicologia, bem como a biologia, é por definição a ciência da vida. Ao contrário da biologia, não abre corpos, os respeitam. São terapeutas. Querem saber da nossa intimidade, isto é, da interioridada psíquica da pessoa. Temperamente, caráter e personalidade, bem como possíveis traumas e tipologias e diagnósticos, também gostam de saber da nossa vida sexual. Disso acusam Freud. Alguns deles falam, outros não (durante a consulta). Freud, Jung, Lacan e Reich são os seus principais teóricos. Contudo, a verdade é que experimental e cientificista ao extremos. Aplica métodos, questionários e entrevistas, bem como a estatística para corroborar as suas inferências, ou seja, o que nós homens comuns chamaríamos: interpretações. A psicologia clínica, a psicanálise, e a pesquisa empírica são suas principais ocupações. São, por vezes, contratados pelo Estado e não é raro concursos públicos nesse sentido. Como todas as outras áreas também está aberta a docência, o ensino. Atualmente está em luta com a psiquiatria.

* * *

Não obstante a diferença entre abordagens e conteúdo de cada área, durante a formação ou graduação, em todas elas, não entenderá a Antiguidade quem não ler os Pré-Socráticos, Sócrates, Platão e Aristóteles, e no mínimo, Heródoto, bem como à Modernidade se não souber um pouco de Descartes, Kant, Espinosa e Hegel, ou Marx, Nietszche e Freud.

1O velho professor, afamado como sofista, hoje é o profissional não mercenário no mundo que tão mal os remunera. Se não é amante do que faz não poderá ser feliz nunca.

2Senão a Trasímaco na República de Platão Livro I.

sábado, 25 de abril de 2009

Canteiro para obra(s)

Aleixo certo dia recebeu a proposta de migrar do nordeste paradisíaco para no inóspito velho mundo se tornar operário da construção civil. A sua mania de organização, além de uma rápida e tonitruante paixão não correspondida, foram as molas e o remate de sua decisão. Nem pensou muito e no dia seguinte partira, logo ali estaria. Apenas o seu amigo que lhe havia proposto a mudança na vida, o foi despedir. Esse ligou a um dos seus para recomendar o seu silencioso amigo a outros que nem tão frios nem tão próximos seriam, apenas guiariam os seus primeiros passos.

Ao desembarcar em vasto e deserto aeroporto, não prestou atenção às antiguidades, nem a diferente sorte de pessoas que qualquer estrangeiro pensaria divisar e procuraria distinguir, à primeira vista. Perpassando tanto mármore ficou surpreso apenas pelo completo repertório de músicas brasileiras que o fizeram de pronto familiarizar-se com a dessemelhança. Soube como é bom o bálsamo de poder passar despercebido em virtude de tempo e distância.

Hospedou-se em um hotel modesto e não saiu do quarto no primeiro dia. Esperava o telefonema que deveria lhe indicar suas vezes e o seu itinerário, o que cumpriria indubitavelmente. Desde o desembarque aquela rotina enérgica estava prefigurada em sua mente. O trágico em seu destino era que não desejava fazer fortuna, o que acabaria acontecendo, porém ver obras suas erigidas em direção ao céu: isso é que o movia.

A arquitetura, pensava, era o melhor modo de tornar-se imortal. Ao início dos trabalhos não recusava nenhuma solicitação, mesmo aos sábados fazia hora extra e nos domingo, consertos domésticos em residências de particulares. Logo foi admirado, porém nunca promovido por sua dedicação. Desprendimento, força e caráter nos trabalhos que os europeus não faziam de bom grado[1].

Não se dignava qualquer solércia frente aos agraves corpóreos. Desconhecia lábia para reclames e gozava de saúde inabalável. Regozijava por poder passar dias sem com outro falar. Era poliglota no silêncio. Assim passou os primeiros meses, incógnito, solitário em sua labuta a subir paredes de concreto, e logo acrescentara mais um verão a sua sina. Com o canteiro de obras guardava o sigilo de suas orações e pensamentos, incólume a todo e qualquer um, inaudito e recolhido em si.

Em um dia que começara madrugador após breve sonhar e, diga-se, porém, que breve se tornaria prenúncio de rítmico movimento, saiu à padaria. Harmônico, quem o dirá?

Naquele dia escuro e chuvoso, abrigando-se de quando em quanto, em alguma árvore, assim que a chuva aumentava, tombou com uma pessoa caída, em meio de uma grande praça, que praguejava, escarnecia das gotas assim que assim a atingissem, tão belo lírio, chafurda no meio a um denso lamaçal, como quem com isso se compraz. Não há para onde, todo Parzifal encontra sua Kundry.

– O que faz ai?

– Não é da sua conta!

– Não faça isso.

– Quem pensa que é para me dirigir a palavra? Suma e me deixe morrer em paz!

Achou aquilo um absurdo. Era demais para alguém tão jovem ter-se tornado assim tão iracunda, juntas isso tudo e terá o espetáculo absurdo, não ilusório, que é representação da tragédia do espírito, magnífico e deplorável.

– Quem sois vós?

– Sou divorciada, em regime de separação de bens.

– Certo! Mas como te chamas, litigante?

– Betina.

Passou a olhar para os lados, ladeava-lhe o que no início não percebeu. Como seu nervosismo não contagiasse Aleixo que via em suas mãos e lábios a fremir violentamente a imagem do cosmo desconcertado, estendeu-lhe as suas guias. Ainda que um sentimento de mar de ondas lentas e largas lhe tragasse de um istmo a outro como o das ilhas gregas, algo que vem, vai e passa saltitante depois de tê-la erguido, mesmo aí permaneceu firme. Imaginou que fosse causa, mas como não reputava a si como aos outros qualquer importância não justificada, logo afastou esta idéia. No entanto, perguntou.

– Penso que estás assim nervosa por teres com um estranho. Eu vos comprometo?

– Sim! É prejudicial para a minha reputação ser vista a conversar com rapazes desavisados.

– A! Basta disto! As pessoas são todas iguais, não importa o lugar onde se lhe as encontre. Conduzir-te-ei até sua casa, quer queira quer não.

Ela não se opôs. Sua roupa estava em frangalhos e coberta de lama e do lodo que apanhara no charco. Logo que entrou em casa, abandonou o estranho na sala e se dirigiu ao quarto.

Ele estranhou a demora e a completa falta de modos. No fundo queria apenas se despedir. Subiu as escadas e a cada degrau chamava pela anfitriã que havia se desfeito de si.

Chegou à proximidade do quarto contínuo com o corredor, que estava com a porta aberta. Voltou, desceu as escadas e passou a chamar mais alto. Assim que chegou aos berros subiu novamente, desta vez, impaciente pela falta de cortesia. Eram muito frios e ignoravam com facilidade ao outro, estes rígidos europeus. Entrou abruptamente no quarto, sem cerimônia. Fechou os olhos e pediu desculpa. Abriu-os. E ninguém viu.

Seguiu chamando até ao portal do banheiro onde a encontrou desmaiada na banheira. Retirou-a daí, ato contínuo baixo o chuveiro. Água corrente contra água estagnada.

A imagem daquela cabeça tombada graças a um coquetel de veneno ou remédio, pendendo de sua mão, para trás e em seus olhos que por não estarem completamente cerrados, não abandonavam os seus, o afetou por completo. Não podia deixar de ver naquilo tudo o mais óbvio a flor e a atenção devida ao que fenece.

Tomou-a nos braços e enquanto banhava a sua cabeleira longilínea até encontrar por entre as reentrâncias a superfície, a água a trouxe de volta de um dos céus. Devia se desvencilhar daquelas roupas. Fez com que em uma espécie de indução, que incutia mui próximo ao seu ouvido ela mesma tirasse cada uma. Ele servia de cabide das peças ensopadas enquanto afundava na imprecação.

– Deus! Como se conspurcam com estas drogas.

Jogou-a na cama. Não havia sensualidade ou erotismo – minto – em suas roupas transparentes e molhadas, nem sem elas amoldarem o corpo, apenas fraqueza se via no espetáculo natural das curvas.

Sentiu o pulso dela vacilante. Tentou despertar-lhe com tapinhas no rosto e deixou vermelhidão em sua face pálida. Derramou o mais odorífico perfume na ponta de sua camisa amassando e dispôs perante as narinas da suicida.

Ela tossiu. O que o animou. Mas não a acordou. Jazia em lúgubre letargia, anestesia da arte médica tornada propiciatória do veneno nos trópicos dos inibidores psíquicos.

Ele saiu-a, após permanecer por algum tempo ao seu lado. Como bom médico natural deixou o quarto em busca de lhe fazer algum tipo de infusão ou chá, e também para pensar em quê se metera.

À escada emadeirada descendo, examinou alguns quadros empoeirados e viu que as paredes da casa quedavam em completo abandono, cheias de infiltrações, e que não viam pintura há séculos. A casa era aconchegante e plácida, contudo não perduraria muito tempo se dependesse de sua proprietária, foi o que pensou.

Devia-se fazer algo ali, aquilo era como canteiro mal cuidado, sombra do desleixo e dos falsos interesses para com a vida. Não mover-se assim tão atabalhoado, e cuidar de tudo que se encontra no caminho de cada dia, e antes que isto possa se perder em analogias sucessivas, franquear o espaço e recuperá-lo pelo fito do forte anelo... Flagrante que é preciso flanquear paredes e cobri-las de atenção. No espaço de tua morada toda a ordem é necessária.

Tudo o que vive requer atenção. Como podemos afirmar que algo está vivo? Ou que possua alma? Consciência vá! Que tudo isto que nos rodeia exista e não seja mera ilusão transitória? Não podemos negar existência às coisas que vemos, nem às que não vemos? Estar ciente do véu é apenas evidenciar, o que importa é o que fazer então com isso.

Enquanto esteve na cozinha fez-lhe uma infusão e chá de boldo. O suor iria fazer com que as substâncias evadissem pelos poros. Dobrando-a sobre o pescoço fez com que tomasse alguns sorvos do chá que tivera a precaução de soprar beira orla da xícara de Sachs. Fez-se ouvir a eructação, ela virou-se e voltou dois graus de profundidade até o sono simples e pesado[2].

Ainda que a cama fosse mui convidativa, resolveu descer novamente para no centro da sala traçar o plano de reforma da casa. Estava decidido a fazer o quarto dela por último. Estendeu-se ao rés da sala a fitar o teto. Dormiu sub-repticiamente após ter guardado o molde, a dimensão física e geométrica da casa.

Acordou com os dedos cerzidos em cima da barriga, vendo que ao lado, a antes moribunda, agora convalescente espreitava esquisita, inquiridora.

O que faz ai?

Sou um obreiro em vida, tanto em sonho quanto na vigília.

Ele que tinha despertado uma hora antes, havia preparado o café e tornara a cochilar. Tomou-a pela mão e levou-a a mesa. Ele a fez provar uma omeleta de amoras, e bolo de milho que foi seguido de pudim de leite e ameixas e um copo de água das fontes. Ofereceu-lhe ainda pão sírio com ricota, rúcula e tomates secos, o que ela rejeitou, acedendo ao desejo de repetir o bolo de milho com queijo Edam.

Após isso, sem trocarem uma palavra exceto aos olhares, ele se despediu e foi trabalhar. Voltou ao fim do turno da tarde munido de todo tipo de tralha: cinzel, espátula, nível, prumo, régua, transferidor, compasso, pincel, monóculo, esquadros, &c, tudo dentro de balde com roldão e duas latas de argamassa.

Ao ver que ele estirava, após afastar o tapete persa, um papel A1 ao solo rente, fixo pelas ferramentas, ela boquiaberta, questionou:

– O que pensa que está fazendo?

– Acaso quer pensar comigo?

Ele transpôs o desenho que tinha em mente, afixou-o e retificou-o ao fio do esquadro. Burilou as três dimensões, e demonstrou a ela a quarta, que é o tempo. Falou em abrir um pedaço do telhado, com uma nova escadinha subindo em roldanas e um contrapeso que serviria no alto do teto de observatório.

Isso foi matéria de seus primeiros sonhos. O mais inverossímil é que o barulho, se é que houve, nos sonhos dela semelhava a imensidão da noite orquestrada, onde a luz em nós se vê seqüestrada para a vida de sóis.

Nas três semanas em que perduraram as obras ele não se permitiu devanear seja nas reentrâncias das frestas ou nas paredes nuas. Retirou-lhe qualquer vestígio de lodo, lama, pintura antiga ou pólen. Ar estagnado não se via, como um fole vivo, o inspirador fazia o espaço habitado transcender o espaço geométrico, pelo trabalho e labor ao ritmo de sua cardiodisséia.

Com o pretexto de que ela não deveria dormir em casa o último dia da reforma devido à violência urgente das reformas no quarto, deu-lhe, com o acumulado de suas horas extras na construção diurna, dois dias e uma noite suíça, com esquis e chocolate quente, o que a faria voltar, definitivamente, a dormir bem.

Recebeu-a com a casa envolta em fita e champanhe. Como a frente da casa brilhasse em seus olhos espirais tais luzidias clareavam a face do mundo em projeções luzi líneas, permitiu-se chorar no ponto onde antes dorme e logo fulge e refulge.

Ao quarto transparecia a imensidão interior da casa e de lá ela divisava como nunca antes a sua querida vista para o lago onde cisnes despediam-se. Quando subiram, o contrapeso exato de seus corpos os levava alto no fito, emitiu a sua citação que se tornara a predileta, levemente modificada:

Quando o cimo dos nossos céus se juntarem – e levava com ela as mãos juntas a se entrelaçarem no vértice superior do triângulo – teremos, enfim, um teto.

Habitaram cada canto, cada recôndito, no peito entreteciam fibras, entre os dedos laços e uma aliança, o que já havia foi proposta entre lances de vista entrecortada e sons. De todos os modos possíveis mobilharam a casa com amarelinha, rolaram corpos, deitou-se muito, engatinharam, testaram a resistência do soalho em peripécias gravitacionais e malabarismos. Ouviam a sua própria música, fruto dos influxos vocais e da ginástica era quase uma distração, se não fosse levada a sério, intensa e variegada, constante e imaginativa, diversa e invariável.

Ensinou a ela aritmética, geometria, física, que compreendia a dinâmica, a estática, a eletrônica e a cinética, e também astronomia, apenas porque ela não tivesse paciência para os longos processos químicos, pensou desistir do laboratório que seria construído no porão. Devia-se isso ao ser ávido que ela era?

Ela tornou-se arquiteta. Com pouco trabalho fora nomeada diretora de obras. Era um traço de sua personalidade. Indicar para outras pessoas aquilo que não sabia fazer a si mesma. Fora ela contratada antes de findar seus estudos, o que não sei se chegou a ocorrer. Ele, com um ano recém-completo de trabalho na construção civil não precisaria mais trabalhar. Tinha transformado as doses heróicas de trabalho, labor e vigília em uma frutífera poupança que rendia agora nos fundos de investimento fixo.

Ele correu-lhe a dar a boa nova. No entanto a pura paz da casa foi perturbada por um estranho familiar. Viu uma sombra se insinuando a porta do quarto quando divisara o cimo da escada. Como adivinhasse, apanhou-lhe pela cauda e o pescoço, e assim como se rechaça um gato deveras manhoso, atirou-lhe pela janela, aos olhos dela, de modo que se lhe quebrassem os dois braços e as duas pernas. Ao que gritou:

– Estás louco?!

– Ah, a janela? Conserto em poucos minutos. Irei antes tomar uma ducha.

– Não pode fazer isso. Quem é você? Desconheço-o agindo assim! Eu o convidei. Encontrei-o a padaria e disse-lhe que viesse ver como estava a nossa casa.

– Tu o convidaste... Não se preocupe imprestável como é, será agraciado com o seguro de vida. Estado de bem estar social famigerado!

Ele amainou o gesto, deu de ombros e entrou ao banho. Ao sair, ainda envolto na toalha, puxou um lençol, estendeu-o ao chão enérgico, pusera sobre ele suas duas calças, duas bermudas, um casaco, um paletó, uma sandália. Tomou uma calça e um sapato, uma das suas três camisas e o casaco, e concluiu o embrulho pondo sobre ele os três livros que dispunha, a saber: Martin Éden, Fausto e o Dicionário Filosófico. De um modo assaz especial tinham sido Goethe e Voltaire seus irmãos, e dispôs sobre isso, carinhosamente seu avental de pedreiro.

Ela só olhava. No fundo achou teatro. Agasalhado ele dirigiu a ela um olhar de despedida. Ai ela compreendeu. Levantou-se pálida. Chegou-se até ele e perguntou:

– O que pensas que estás fazendo?

– Já pensei, estou a fazer.

– Como se justifica isso – perguntou – de súbito ecoou em sua mente o “Tu o convidaste...”. Então irás assim? Ao que ele citou o que deveria ser a esse tempo, a sua citação mais adequada.

Todo cálice é morada.

Ela ruborizou e iracunda desfechou-lhe um tapa ruído seco, ainda que ele não se movesse e seus olhos continuassem fixos, recordava-se o que o seu tio, também seu irmão, o houvera dito, ainda em sua terra quente e acolhedora.

“Numa mulher se não bate, deixa-se”.

Ele inclinou-se, em uma longa mesura, e em seguida, tomou-lhe a mão e a beijou como um cavalheiro, virou-se e antes que perpassasse o umbral do quarto, pode-se ouvir sua tréplica a frase que segue, de perfil e com canto de boca subindo aos olhos.

– Canalha! Todos os homens são iguais.

Um para mim vale por mil, se for o melhor.

A linguagem faz-nos universalmente homens em gênero, número e grau.

Ela desaguou em lágrimas. Ainda assim ele partiu. Dele não se ouviu falar por seis meses. Um passarinho ou uma ave migratória que se perdera um dia lhe contara que ele tinha voltado ao Brasil, e tinha um roçado em algum lugar do nordeste, e que produzia tudo o que necessitava para viver, especialmente milho. Foi ai que ela teve o impulso de atear fogo a casa.

Ela começou pela cozinha. Como quisesse despedir-se dela mesma, desceu ao porão e não agüentou a luminosidade do que viu. Prostrada no jardim permaneceu imóvel. Viu o ruído do observatório que tombava na madeira sólida do soalho.

A casa, entretanto, não ardera como pensara, em um estado que semelhava ao sonho, viu uma procissão silenciosa de sombras, e fumaça sair da casa, e cheiro de cinzas misturadas com água. Viu, ao seu lado um espectro coordenar tal maestro um grupo de obreiros.

O duplo entrou a casa já refrigerada e voltou a ela depositando o que retirara do porão, que houvera sido um laboratório e que resistia assim a altíssimas temperaturas e condições anormais de pressão. Diante dela se via o que fora cinzelado às altas horas da madrugada, enquanto ela dormia: jóias e adornos, tais se forjam numa ourivesaria cósmica complexa feita em sua homenagem[3].

As ressonâncias íntimas reavivadas pela voz sibilante do duplo fizeram à dupla Melusina dormir. Acordou de um profundo e confuso sonho com a casa intacta, no coração de seu leito. Pôde divisar do horizonte de sua cama a voz rouca do outro na tez bronzeada por trás de um jornal matutino lhe perguntar indiferentemente as horas.

Francisco de Assis Vale Cavalcante Filho,

João Pessoa, janeiro de 2009.


[1] A construção civil sobre as bases de uma corporação surge na Europa, porém dizem que o interesse nisso foi copiado do Oriente, como tudo o mais. Marco mesmo do processo civilizador, mas dentre os aristocráticos, e os burgueses é vergonha ganhar a vida com o fruto do trabalho manual.

[2] O estado em que se julga não se ter sonhado ao acordar.

[3] Diz-se que se empregou o mais puro ouro de Ofir em gemas que fariam corar a soberana Nefertiti.